A Lei Federal nº 14.874/2024, sancionada em 28 de maio de 2024, institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, reformulando completamente o modelo anterior de regulação — o Sistema CEP/Conep. Criada em 1996 e vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) consolidou-se como instância central de proteção aos participantes de pesquisa, coordenando mais de 900 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) distribuídos nacionalmente. Sua composição plural assegurava representatividade regional, de gênero, racial e de áreas do conhecimento, além de independência em relação a governos e ao setor produtivo. Essa configuração, construída ao longo de quase três décadas, tornou o Brasil referência internacional em ética em pesquisa, promovendo equilíbrio entre o avanço científico e o respeito à dignidade humana.
Com a nova legislação e a promulgação de seu decreto regulamentador, em 07 de outubro de 2025 (Decreto nº 12.651/2025), a Conep perde seu papel estruturante e participação efetiva no novo sistema. As funções de regulação, normatização e credenciamento dos comitês foram transferidas à recém-criada Instância Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Inaep), vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS/MS). A mudança retira o sistema da esfera do controle social direto do CNS e o insere em um modelo de governança mais suscetível à influência de interesses políticos e econômicos.
Em reação a essa reconfiguração e rejeição pela SECTICS da inserção da Conep na composição da Inaep, em meados de outubro, 26 membros da Conep renunciaram coletivamente, denunciando o esvaziamento de seu papel histórico e a falta de diálogo no processo de transição. Em 14 de outubro, a SECTICS emitiu a portaria n° 85, que institui um Grupo de Trabalho Temporário (GTT) para apoiar o processo de implementação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e da Inaep. A portaria tem como objetivo apoiar a implementação do novo sistema e estruturar partes dos processos que ainda não se encontram plenamente operacionais. Para a finalização de suas atividades, o GTT dispõe de 3 meses, prorrogáveis por igual período.
Alguns dos cenários trazidos pela nova lei:
- Extingue-se a dupla apreciação e acompanhamento dos protocolos de pesquisa de áreas temáticas especiais pela Conep, cabendo exclusivamente aos CEPs a responsabilidade de apreciar, aprovar e acompanhar os estudos.
- As apreciações passam a ser realizadas por um único CEP, mesmo as de projetos multicêntricos ou envolvendo outras instituições participantes. A avaliação deverá ser feita, preferencialmente, pelo CEP vinculado ao centro coordenador da pesquisa, cabendo-lhe notificar os CEPs dos demais centros participantes sobre sua decisão.
- Em ensaios clínicos, o fornecimento gratuito pós-estudo do medicamento experimental aos participantes da pesquisa, antes por tempo indeterminado (enquanto houvesse benefício), foi limitada a cinco anos a partir de sua disponibilidade comercial no país. A avaliação sobre a necessidade de fornecimento pós-estudo do tratamento experimental para cada participante será realizada pelo pesquisador do estudo.
- A lei possibilita a inclusão de participante em pesquisa em caso de emergência sem que haja obtenção de seu consentimento prévio. Posteriormente, tão logo seja possível, deverá o pesquisador comunicar o fato ao participante ou seu responsável legal e obter consentimento quanto à sua permanência na pesquisa.
- A participação de indivíduos indígenas na pesquisa deverá ser comunicada ao Ministério Público.
- A apreciação ética da pesquisa pelo CEP e emissão do parecer deverá ocorrer no prazo de 30 dias úteis (antes, em 30 dias corridos) a partir da data de aceitação do protocolo pelo Comitê. Em caso de ajustes necessários ao projeto, há suspensão do prazo por, no máximo, 20 dias úteis (período de 10 dias úteis, prorrogável por igual tempo mediante justificativa), para que o pesquisador proponente atenda às demandas solicitadas pelo CEP. O processo de análise da pesquisa poderá ser cancelado em caso de não cumprimento do prazo.
- Diminuição na proporcionalidade de membros Representantes de Participantes de Pesquisa (RPP) na composição dos CEPs, alterando de 1 RPP para cada 7 membros (mínimo de 2 RPP por CEP), para a inclusão de apenas 1 representante no comitê.
Entidades como a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) vêm manifestando publicamente preocupação com os riscos de retrocesso ético, especialmente concernente à proteção de populações vulneráveis e à autonomia dos participantes. A SBB ingressou no Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7875), questionando a legalidade da nova estrutura e a limitação de direitos dos sujeitos de pesquisa. Dentre as preocupações e riscos viáveis estão o retrocesso social e violação ao direito fundamental à saúde, à autonomia e ao consentimento informado; o provável ônus financeiro ao SUS, sem previsão orçamentária; e a restrição à participação social.
Tendo em vista as mudanças trazidas pelo novo sistema, procedimentos e fluxos serão estabelecidos para atender às orientações instituídas. Todas as eventuais alterações e adaptações serão comunicadas à comunidade ENSP pelo CEP por meio de canais institucionais no decorrer de suas implementações. Por ora, a submissão de protocolos à Plataforma Brasil se mantém inalterada. O CEP/ENSP reafirma seu compromisso com a dignidade, direitos e autonomia dos participantes de pesquisa, concorrendo para que toda pesquisa envolvendo seres humanos por ele apreciada seja conduzida de forma ética, transparente e responsável. Seu compromisso estende-se, ainda, ao acolhimento e à orientação de pesquisadores e discentes, promovendo uma cultura institucional de integridade científica e de respeito mútuo em consonância com os mais elevados princípios da ética em pesquisa.